terça-feira, 23 de outubro de 2007

Cicatrizes felizes

As crianças mostram as cicatrizes como se fossem medalhas. Os amantes usam-nas como segredos a revelar. Uma cicatriz é a palavra transformada em carne. (Leonard Cohen)

As cicatrizes são as marcas do passado impressas no corpo e na alma, que não nos deixam esquecer as aventuras e desventuras por que passámos. Os joelhos esfolados em criança muitas vezes nunca saram, e na memória ficam as histórias de cada pedaço de cicatriz, que muitas vezes se unem. Cada joelho tem uma história, quase sempre associada à desobediência, a corridas loucas e a brincadeiras que nos pareciam sempre inofensivas - quando somos crianças acreditamos que podemos voar e não há limites de alturas, saltamos sempre de mais alto. A cabeça, essa, nunca parti, tive essa sorte, porque vi partir muitas, mas as minhas pernas eram sempre uma vergonha, entre cicatrizes, feridas e crostas arrancadas. Nada que ficasse bem a um menina, mas o facto de haver mais primos rapazes convertiam-nos em maria-rapaz num instante, éramos só duas.

Era subir às árvores, todos juntos, todos ao mesmo tempo, porque o juízo não vinha de lado nenhum. Aprender a andar de bicicleta descendo uma rampa enorme que ficava já longe dos olhares de qualquer mãe ou tias atentas, que acabava no fim do mundo, com um pedregulho enorme que eu não soube contornar! Não sabia andar de bicicleta, era o que era, também não foi assim que aprendi, mas com a Inês, na bicicleta do Gonçalo, à noite, depois do jantar. Ela agarrava-me para não cair, mas quando largou eu não caí! Caí foi depois, de orgulho, quando percebi que já era crescida como eles e sabia andar de bicicleta. É o melhor presente que se pode ter, uma bicicleta! O meu pai deu-me uma, depois, com um cesto cor-de-rosa e uma campainha! É o primeiro transporte para a liberdade, o segundo para a asneira! Apanhávamos amoras em silvas impossíveis de alcançar, debruçando-nos sobre o muro e acabando por cair par lá. Correr, correr, subir às árvores e acreditar que o amanhã chega, e com ele mais brincadeiras, mais bolos e doces, a marmelada da avó, pão com manteiga e açúcar que só ela sabe as quantidades para ser delicioso, uvada e geleia. À noite, se nos portássemos bem, às vezes, podíamos comer uma ginja da ginjinha que a avó fazia, meticulosamente tirada com um palito gigante.

A minha infância foi muito feliz, num mundo de muitas brincadeiras. As brincadeiras no quarto escuro, de que alguns tinham medo, muito medo - eu não! O correr pela casa, passando pela sala de jantar que abanava o chão e fazia um barulho metálico de que tínhamos medo à noite e, às vezes, durante o dia! Mais tarde, quando nasceram as minhas irmãs, o quarto das birras da minha irmã, a sala onde ficava com a minha mãe a ver televisão, onde fazia desenhos a amarelo torrado, a minha cor favorita! Os meus cães, O Tin-tin e a Flica, que morreu e me deixou muito triste. Os periquitos que nunca duravam mais de uma semana, até eu desistir de os ter. As frutas que íamos comer directamente da árvore - ainda hoje faço isso com as nêsperas! Como todas ali debaixo da árvore. As incursões ao sótão para ver brinquedos antigos e mundos antigos. As histórias que se contavam, de um túnel que ia ali de casa até ao castelo de Óbidos, e que nunca descobrimos, a cave que nunca encontrámos, com duas arcas - a do tesouro e a da peste e que se dizia que a minha família nunca abrira, por medo de abrir a errada. A cozinha de onde saíam os manjares dos deuses, feitos por qualquer um – ali, todos e todas tinham mãos de fada. As malaguetas que alguém comia - era eu, mas que ninguém acreditava, até me verem comer uma série delas durante um jantar, inteirinhas e secas. E sem beber água, que eu era forte! Os banhos à meia-noite, no Baleal, que a minha mãe me levava a tomar muito de vez em quando! O primeiro dente que me arrancaram da boca, ali mesmo em frente à praia. Recordações... cicatrizes felizes!

Os sonhos de uma infância feliz, de brincadeira e aventura, como só os livros dos Cinco um dia me contaram. Acho que vivi um pouco de todas essas aventuras, no campo e na praia. Sempre em segredos, sempre em correrias, sempre felizes, a saltar de rocha em rocha! Ai, a vida de criança é tão feliz, pura e inocente que, quando crescemos, é bom lembrar e guardar as cicatrizes que nos ficam no coração e na pele, uns joelhos eternamente esfolados, todos ou só talvez no sítio abaixo dele. Ainda hoje, quando nos juntamos, somos um bocadinho crianças e fazemos da nova geração as cobaias das nossas brincadeiras, a quem teremos todo o gosto ensinar. Trepamos às árvores, atiramo-nos à piscina e corremos atrás uns dos outros. Estas cicatrizes são as melhores páginas dos livros da nossa vida, a melhor recordação desse mundo feliz.

2 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pelo texto, Sofia. Enterneceu-me imenso, sabes? A tua infância foi feliz como a minha, e muito parecida. Dessas cicatrizes vale a pena fazer colecção, não é? E contá-las, e passar o testemunho às novas gerações. Sei que vais fazer isso mesmo, e muito bem.

Beijo grande

Anónimo disse...

Ainda bem que gostaste! Achei que era tão grande que ninguém ia ler... recebi comentários por e-mail, mas aquela gente é tímida, nada de comentários aqui publicados!

Obrigada pelos teus elogios! beijinhos