terça-feira, 29 de abril de 2008

Contagem decrescente... 2, 1, 0!

Desejos

É já hoje a partida para terras do sul, mas parece que as horas não passam, que os ponteiros não avançam. É sempre assim. Quando queremos que o tempo passe, ele não passa, quando o queremos eternizar, ele acelera e corre veloz contra os nossos ventos e marés. Temos de o saber contornar, ou enfrentar de espada em punho.

Vou para a praia e para um sol que espero que não fique entre as nuvens, ou escondido em manhãs de nevoeiro. Quero a sombra da espreguiçadeira para pôr as leituras em dia, uma mesa de esplanada virada ao mar, num fim de tarde, para ressuscitar a correspondência. Os jantares no pátio num quase verão quente, ou uns jantares até quase a madrugada. E acabar a dançar numa qualquer pista até ser dia.


Bom fim-de-semana a todos e até Domingo!


(O Extremo Sul - José Miguel Wisnik, roubado à Porta do Vento, sem autorização, para comemorar um ano de ventos e brisas!)

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Contagem decrescente... 3

Matisse, Janela aberta

Contagem decrescente para mais quatro dias de férias!

Mal posso esperar pela hora de saída, pelo fechar da porta da Biblioteca, na quarta-feira. De rodar a chave e de a guardar, de dizer adeus aos livros que ficarão, por certo, a conversar! Hoje, que ando em desarrumações de umas prateleiras, quero deixá-los no sítio, na minha hora de partir, para que não possam fugir. Para estes dias pouco mais me apetece do que poesias, músicas e um sol que quase parece de Junho, só faltam os jacarandás!

De janela aberta aos murmúrios da cidade e à leve brisa que ainda corre, deixo-me levar pelas palavras que guardo, esperando o depois de amanhã! Hoje, uma poesia que anda aqui a navegar na minha cabeça, de um lado para o outro, passeando entre o ser alegre e o ser triste!

EU ESCREVI UM POEMA TRISTE

Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!


Mario Quintana - A Cor do Invisível

quinta-feira, 24 de abril de 2008

The day after

Gilbert Becaúd- L'important c'est la rose

Segundo a tradição catalã, no dia 23 de Abril, os cavaleiros oferecem às suas damas uma rosa encarnada de São Jorge (Saint Jordi) e recebem em troca um livro. Eu e a minha costela espanhola seguimos a tradição. Recebemos uma flor e oferecemos um livro. A propósito, lembrei-me ainda de um poema de García Lorca que tenho num quadro em casa, por baixo de uma rosa seca que guardo há quase dez anos:

¡Ave rosas, estrellas solemnes!
Rosas, rosas, joyas vivas de infinito;
bocas, senos y almas vagas perfumadas;
llantos, ¡besos!, granos, polen de la luna;
dulces lotos de las almas estancadas;
¡ave rosas, estrellas solemnes!

(...)
Flor eterna. Conjuro al suspiro.
Flor grandiosa, divina, enervante,
flor de fauno y de virgen cristiana,
flor de Venus furiosa y tonante,
flor mariana celeste y sedante,
flor que es vida y azul fontana
del amor juvenil y arrogante
que en su cáliz sus ansias aclara.

¡Qué sería la vida sin rosas!
Una senda sin ritmo ni sangre,
un abismo sin noche ni día.
Ellas prestan al alma sus alas,
que sin ellas el alma moría,
sin estrellas, sin fe, sin las claras
ilusiones que el alma quería.

(...)

Nota: Ler todo
aqui.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Matar saudades


Cecília Meireles, em desenho de Apard Szenes

"(...) Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano."
Cecília Meireles (1901-1964)


Voltei a estudar literatura. Andava com tantas saudades de pegar num livro, de fio a pavio, e de destrinçar as entrelinhas, as reticências e o que se esconde por trás de um poema, de um texto. Há dias, lá andava às voltas com Cecília Meireles, quando me perdi em interpretações, em leituras minhas, e senti a tal saudade. Peguei num lápis e comecei a rabiscar os versos, a escrever em letra miudinha ao lado deles e a construir uma nova realidade do poema aos meus olhos de agora. Perdi-me de encantamento.

Gosto de Cecília. Conheço os seus poemas de uma Antologia à qual tenho um carinho especial e de versos soltos que às vezes encontro. Pesquisei um pouco mais sobre a biografia, a sua vida de menina órfã desde cedo, de pai e de mãe. Por isso, desde logo criou uma certa 'intimidade com a Morte', como disse. Ganha com ela a plena consciência, própria dos poetas - o confronto do éfemero com o eterno, porque na vida tudo é transitório, tudo passa. Essa temática tão cara aos poetas de todos os tempos. Gosto da sua poesia transparente, da simplicidade do seu lirismo, que é, ao mesmo tempo, concretizado com enorme preciosismo. Ao lê-la, aproximamo-nos da poesia primitiva, pela sua pureza e espontaneidade.

E foi assim que peguei em livros e me pus a ler e me pus a estudar uma poeta que é autora dos mais claros poemas brasileiros.

Acho que a seguir vou voltar-me para a Sophia ou para Mário Quintana. Ainda não me decidi, mas sei que não vou deixar voltar a saudade!

terça-feira, 22 de abril de 2008

Dia da terra

Torga: "planta transmontana, urze campestre, cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas entre as rochas. Assim como eu sou duro e tenho raízes em rochas duras, rígidas, Miguel Torga é um nome ibérico, característico da nossa península(...)"




Hoje é Dia da Terra e tomo-o apenas como pretexto para aqui pôr o poema Terra de Miguel Torga, um dos meus poetas de eleição. Cantor do mundo rural, da terra portuguesa (Hoje sei apenas gostar / duma nesga de terra / debruada de mar - in Pátria) e das forças telúricas, poeta das cores da terra e da realidade quente do interior português. Caminhante numa busca incessante da intimidade com os elementos primordiais e defensor do que chamou 'espírito da terra'.

Também eu quero abrir-te e semear
Um grão de poesia no teu seio!
Anda tudo a lavrar,
Tudo a enterrar centeio,
E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.

Na seara madura de amanhã
Sem fronteiras nem dono,
Há de existir a praga da milhã,
A volúpia do sono
Da papoula vermelha e temporã,
E o alegre abandono
De uma cigarra vã.

Mas das asas que agite,
O poema que cante
Será graça e limite
Do pendão que levante
A fé que a tua força ressuscite!

Casou-nos Deus, o mito!
E cada imagem que me vem
É um gomo teu, ou um grito
Que eu apenas repito
Na melodia que o poema tem.

Terra, minha aliada
Na criação!
Seja fecunda a vessada,
Seja à tona do chão,
Nada fecundas, nada,
Que eu não fermente também de inspiração!

E por isso te rasgo de magia
E te lanço nos braços a colheita
Que hás de parir depois...
Poesia desfeita,
Fruto maduro de nós dois.

Terra, minha mulher!
Um amor é o aceno,
Outro a quentura que se quer
Dentro dum corpo nu, moreno!

A charrua das leivas não concebe
Uma bolota que não dê carvalhos;
A minha, planta orvalhos...
Água que a manhã bebe
No pudor dos atalhos.

Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O meu poeta de hoje


Nunca são as coisas mais simples que aparecem quando as esperamos. O que é mais simples, como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se encontra no curso previsível da vida. Porém, se nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos nos empurrou para fora do caminho habitual, então as coisas são outras. Nada do que se espera transforma o que somos se não for isso: um desvio no olhar; ou a mão que se demora no teu ombro, forçando uma aproximação dos lábios.

Nuno Júdice

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Adeus ao medo!

Aqui há uns tempos a Ana escreveu esta frase num comentário do Cais e hoje lembrei-me dela, porque assenta que nem uma luva nos meus pensamentos - quando acaba o medo e se acende a luz:

"Todos os dragões da nossa vida são, talvez, princesas que esperam ver-nos um dia belos e corajosos. Todas as coisas aterradoras não são mais, talvez, do que coisas indefesas que esperam que as socorramos."
(Rilke)



(Ana Moura - Aconteceu)


Nota: A música é a quem me apetece ouvir, a propósito de um sorriso matinal, na surpresa de uma voz.

Bom fim-de-semana a todos, volto segunda, que o campo está à minha espera!

Cais das codornizes (XII)


Com o fim-de-semana à porta, a sugestão é partir em busca de um sítio mágico. Um lugar que se torne o centro da Terra, uma fonte de vida, o começo do infinito. Um recanto escondido onde só se possa ser feliz. Nestas coisas, nada como prescrutar as origens. Se o Cais das Codornizes nasceu com Tes gestes cantado por Moustaki e Reggiani, ouçamo-los de novo. Serge no codornizes, Georges no cais. Em busca do paraíso...


quarta-feira, 16 de abril de 2008

À beira de um ataque de nervos...

Hoje não quero o instante de agora, mas o que vem a seguir...

Boca de riso escarlate
E de sorriso de rir...
Meu coração bate, bate,
Bate de te ver e ouvir.
(Quadra escrita por Fernando Pessoa e agrupada póstumamente, em 1965, como Quadras ao Gosto Popular)

A princesa no sapo


A Princesa foi ter com o Sapo e vai ficar por lá, com a promessa de continuar a soprar bons ventos com a sua varinha mágica! Boa sorte, Ana!

terça-feira, 15 de abril de 2008

Sapato de Cinderela


Uma paisagem conquista-se com as solas dos sapatos, não com as rodas de um automóvel.
William Faulkner
Já falei sobre a paixão por saltos altos e como gosto de me passear nas alturas. A verdade é que são uma paixão inexplicável e é uma vontade incontrolável de ter sempre mais uns e passear-me com eles por aí! E assim me junto ao clube!

segunda-feira, 14 de abril de 2008

A nossa orquestra



Ontem, fomos ouvir a orquestra Sächsische Staatskapelle de Dresden, no Coliseu.

Desde pequena que gosto de orquestras e só eu sei porquê! Ainda hoje tenho o mesmo olhar infantil sobre elas, talvez por causa das recordações que guardo das vezes em que as vi, com as minhas irmãs, no tempo em que íamos arrastadas!

Gosto dos maestros que dançam de batuta na mão, que fazem 'pliês' e saltitam de um lado para o outro, com o cabelo solto (nunca poderiam usar capachinho!), ligeiramente comprido, com as pontas a voar como se estivessem ao vento... quase que dão música à música que toca por trás. Gosto dos senhores e das senhoras que tocam os violinos, de arcos todos sincronizados, para um lado e para outro, com caras muito sérias e compenetradas, momento solene. Gosto dos violoncelos, porque os acho muito sensuais e sempre desejei tocar um, e dos contrabaixos, que sempre foram mais altos do que eu, ainda hoje!

Mais atrás, os 'sopros', muitas vezes tocados por homens sem bochechas suficientes para o fazer. Os magrinhos tocavam as flautas e os fagotes, os mais gordinhos as trompas, as tubas, trombones e trompetes. Era assim que imaginávamos, que comentávamos, que nos entretínhamos durante aquelas horas mais compridas da nossa infância! Depois, havia os senhores dos tambores, em cuja arte não encontrávamos muita ciência, pura ignorância da nossa infância! Havia os ferrinhos e os pratos que depois recriávamos em casa, com as tampas dos tachos e com os talheres a bater nas travessas, para grande dor de cabeça da minha Mãe!

Às vezes, um piano de cauda, muito brilhante, muito preto, e uma harpa, a 'menina dos meus olhos', de lado. Perdia-me a olhar para ela e para o dedilhar de quem a tocava...

Enfim, era assim a nossa orquestra. O meu Pai ia enumerando os instrumentos, nós íamos dormitando entre andamentos, mas batendo palmas. A minha irmã gritava 'Bravo!', a seu tempo, para grande risada nossa. O momento das palmas era a nossa alegria – já faltava menos um bocadinho para o fim! O meu Pai explicava o compositor, a orquestra, o maestro e nós íamos acenando que sim, de sorriso amarelo, com ar interessado. No fim, a célebre pergunta:

-Então, gostaram? – ao que respondíamos em coro:

- SIM! – pura mentira, que afinal aquilo tinha sido uma grande seca. As três à frente, em passo acelerado, não fosse o meu pai ter ideias de ainda querer parar em mais algum lado. E lá íamos as três, de kilt igual, meias até ao joelho e camisinha engomada a repetir o que o meu pai dizia à minha mãe e já sabíamos de cor:

- Um dia ainda hão-de dar valor a isto...

E demos, uns dias mais do que outros, umas mais do que outras, mas a verdade é que nos educaram o ouvido e é bom saber umas coisas e ter ouvido outras. Fez-nos bem!

Havia coisas que mudaríamos nesses concertos, devíamos poder bater o pé a compasso, cantarolar a música quando a sabíamos e comentar as caras dos músicos, que são bastante cómicas. Consolavam-nos os joelhos, o nosso piano portátil, para irmos tocando o que ouvíamos. Valiam-nos os ombros umas das outras para encostarmos a cabeça quando o João Pestana chegava. E valia-nos a companhia umas das outras, a troca de olhares cúmplices, os risos e gargalhadas sempre educadamente contidos e a certeza de que alguma vez, a qualquer hora, aquilo teria de acabar. Mas acabávamos por gostar. Nunca revelámos a ninguém, mas às vezes a música era boa, às vezes valia a pena, mas esse era o nosso segredo!

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Cais das codornizes (XI)


Entre cais e codornizes, temos seis irmãos - três manas e três manos. Fazem um corte transversal na pirâmide etária: são adultos, adolescentes e crianças. Têm semelhanças entre si e connosco, mas, sobretudo, personalidades vincadas e singulares. É a eles e a elas que dedicamos a esta Maninha, porque os irmãos estão sempre lá para nós, a recordar canções e a afastar papões. Como não podia deixar de ser, escolhemos versões cantadas por irmãos: Caetano e Bethânia para a Sofia, Chico e Miúcha para o Pedro.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Atenção pecadoras!!!

Rosário Andrade - Adão e Eva (2005), encontrado aqui.


Para as minhas amigas, para que não se deixem levar por maus caminhos:


Hoje ando em arrumações na Biblioteca, a tirar de um lado e a pôr do outro. Os livros passeiam-se de estante em estante e aproveito para limpar o pó, entre dois espirros de alergia. A música canta alto e eu com ela. Danço com a vassoura, com o pano do pó e com um ou dois livros mais pesados. Às vezes páro para descansar, quando algum livro me seduz mais.

É o meu grande problema neste emprego - o jogo de sedução. Olho para as estantes e perco-me com os títulos, levanto-me, vou ter com eles e trago-os para o pé de mim. Abro, começo a ler, continuo, mais um bocadinho, só mais uma página e já perdi imenso tempo. Ando aqui numa luta entre a emoção e a razão (um duelo clássico!). Ontem foi o Tratado de Cozinha e de Copa do Bento da Maia. Hoje ando aqui às voltas com o Pureza e Formosura do Dr. Tihamér Tóth (professor da Universidade de Budapeste), de 1953, dirigido às donzelas, apelando à sua pureza!

Diz a Introdução: 'É para conservares a tua alma sempre cristalina que escrevo este livro.' Já estou no segundo capítulo e estou a rir à gargalhada. Não aguentei não partilhar e já tirei cópias dos melhores sub-capítulos. Acabei de ler agora o Sedução pecaminosa. Diz assim: 'O desabrochar de nova vida é sempre acompanhado de profunda alegria. Contempla a natureza da Primavera: o sol brilha, canta nos salgueirais o rouxinol, a brisa corre mansamente, zumbe a abelha, o regato murmura!'


Avancemos... Pura e bela:


'Tens o dever sagrado de guardar estes desejos e tendências até ao dia em que te apresentarás diante do altar do Senhor, onde o teu futuro marido te receberá pura e branca como a neve.'


Antes do casamento, nunca, seja pelo motivo que for, hás-de dar satisfação a estas tendências e nem sequer prestar ouvidos a vozes sedutoras.


Fora do matrimónio não é lícito cnsentir, com conhecimento e plena deliberação, em pensamentos, desejos, sensações e actos que se refiram à chamada 'vida sexual'. Está vigilante e não consintas em tais pensamentos, olhares, conversas ou acções.
(...)


Cara donzela, queres conservar-te pura?


Há raparigas que, infelizmente, não vigiam, que, sem receio, caminham pela vertente que leva ao precipício. Ai dauquela que começa a descer! Ai daquela cuja alma, em plena Prmavera, apanha a geada duma noite de Maio!'


(...)


Cuidado! Cuidado com os olhos! Não permitas nunca, sob nenhum pretexto, que eles se fixem em nada que possa ofender no mínimo a pureza da tua alma. Não esqueças que no mundo actual pulula em torno de ti uma multiplicidade de inimigos.
(...)
Sabei que se uma jovem é, desde há muito tempo, escrava do pecado de impureza, a sua libertação será difícil, dificílima.
O segredo está em... conseguir passar algumas semanas, alguns meses sem pecar.'
Ainda terei salvação??????

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Sem título

Era manhã e era chuva que caía sem parar, lá fora, do outro lado da janela. Era semana, queria antes o seu fim, para poder ficar a ver passar o dia, por entre as gotas presas na janela. Dia cinzento claro, como se tivessem pousado um véu sobre o sol. As árvores e a relva prateadas de gotas de chuva, caídas e perpetuadas em gotículas minúsculas, mas infinitas, porque o sol não as vem beber. Quero a madrugada inaugural, quero a manhã luzidia da Primavera que adormeceu nas suas tardes de sol e se deixou embalar pela melodia da chuva que cai sem parar. Às vezes, o sol abre um olho aqui, outro ali, e deixa que um pequeno raio atravesse a terra, bata numa janela, ilumine uma madeixa, reacenda uma paixão. Ínfimo raio de vida, que me alimenta e faz renascer para a manhã que nos espera, com a melodia do orvalho.

Quero o sol ameno da Primavera, o meio-dia quente com cheiro a quase-Verão e as tardes de passeio sob as árvores a começar em flor, brancas, amarelas, cor-de-rosa e ao fundo o horizonte a maresia. Quero as noites de mar ainda revolto, pousada sobre a rocha, fim do dia em melancolia de ilusões. Quero a madrugada infinita do amor e da paixão, da loucura, até um amanhã que nunca sabemos como irá acordar.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Muito gostoso...

Sábado passei a manhã a arrumar a casa, porque as ‘tias’ iam lá jantar. Além dos livros que por lá se passeiam, tudo se vai acumulando em cantinhos e mais cantinhos, para que ganhem definitivamente o seu canto. Para animar a roda viva de arrumações aqui e acolá, pus o novo disco da Bethânia a tocar – Dentro do mar tem rio –, o espectáculo ao vivo dos discos Pirata e Mar de Sophia (com as poesias da nossa Sophia, uma beleza!). Gosto da Bethânia, das suas letras poéticas, de quando recita poesia, de quando a canta e das melodias inaugurais que a envolvem. Por isso, deixei-me passear pela casa cantando as que sabia e aprendendo as que ainda não sei. Boa companhia, sempre!

E que saudades que eu tinha desta...




Tô com saudade de tu, meu desejo
Tô com saudade do beijo e do mel
Do teu olhar carinhoso
Do teu abraço gostoso
De passear no teu céu

É tão difícil ficar sem você
O teu amor é gostoso demais
Teu cheiro me dá prazer
Quando estou com você
Estou nos braços da paz

Pensamento viaja
E vai buscar meu bem-querer
Não posso ser feliz, assim
Tem dó de mim
O que é que eu posso fazer

Foi bom, não foi?

Sexta-feira foi dia de Knopfler no Campo Pequeno. Acho que ainda ando a 'passear no éter', depois do concerto. O meu computador teima em começar a tocar o Local Hero, mesmo quando eu não lho peço, a meio da noite! Mesmo assim, não amuo e deixo-o embalar-me, como naquela noite mágica.

Há dois anos, vi-o no Atlântico, quase colada à grade, a pular o tempo todo. Tinha sido tão bom que não quis perder esta vez, com outro cenário, com um novo CD para divulgar, mas tinha a certeza de que as minhas preferidas estariam por lá. Andei o dia todo com as músicas na cabeça, a saltitar de faixa em faixa, a ver se não me esquecia das letras ou não trocava as estrofes, como é meu hábito!

Chegada a hora, lá estava, à espera que a magia da guitarra inundasse a arena. ADOREI! Foi dançar o tempo todo, pedir bis e tris. E ficar com as músicas a passear pela cabeça!

Mark Knopfler tem o condão de pôr todo o público a cantar, mesmo que esteja só a tocar guitarra. Admito que chorei no Romeu and Juliet, no Brothers is Arms e que quase desesperei quando via a noite terminar sem o Going Home do Local Hero, que eu tanto queria 'tararear' e dançar, porque é, sem dúvida, a minha preferida de todas. E foi o meu presente da noite, a última, começando naqueles acordes tímidos e lentos. A música começou a desenhar-se e, quando percebi qual era, saltei sem parar e cantei-a toda, se é que dizer ná-ná-ná é cantar!

Desta vez não ficou na memória um abraço, mas muitos, e a certeza que para alguns seria o primeiro de muitos concertos.

Obrigada, Mark, pelo concerto e obrigada, Pedro, pelo presente! Para a próxima vamos outra vez!

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Cais das codornizes (X)



Na música, como na vida, tudo tem várias versões. Até - ou sobretudo - os sonhos, as utopias, os impossíveis que se tornam possíveis quando conjugamos diferentes ângulos de visão. Os arco-íris que surgem quando deixamos que o sol atravesse a gota d'água, e que depois percorremos à procura de um caldeirão de ouro. Para lá de um desses improváveis arco-íris está o dueto póstumo que podem ouvir no cais: Katie Melua e Eva Cassidy cantam Somewhere over the rainbow, embora esta última tenha morrido quando a primeira era criança. No codornizes, a versão original, a d'O feiticeiro de Oz, cantada por Judy Garland.


quarta-feira, 2 de abril de 2008

Um sucesso


Tem estado há dois dias no repeat aqui na biblioteca. É um disco de sucessos e de confidências, mas eu fico-me pelos sucessos, que canto de janela aberta de par em par, para uma Lisboa iluminada pelo sol de Abril.


Ce soir mon petit garçon
Mon enfant, mon amour
Ce soir, il pleut sur la maison
Mon garçon, mon amour
Comme tu lui ressembles!
On reste tous les deux
On va bien jouer ensemble
On est là tous les deux
Seuls

Amante de duas noites



Os livros de Patrick Süskind são sempre amantes fugazes, porque nem nos damos conta do tempo a passar. As folhas passam a um ritmo veloz mas, ao mesmo tempo, são como brisas que navegam no nosso pensamento. Aconteceu-me com A Pomba, com O contrabaixo e, nos últimos dois serões, com O senhor Sommer. O mesmo já não posso dizer de O perfume, que me acompanhou em vários fins-de-semana, em passeios por Lisboa, lendo ao ritmo da calçada, sentindo todos os cheiros que o livro emite e acabando a última página na Basílica da Estrela, durante um concerto de órgão.

"No tempo em que eu ainda trepava às árvores - há muitos, muitos anos, há dezenas de anos atrás, media apenas pouco mais de um metro, calçava o número vinte e oito e era tão leve que podia voar - não, não estou a mentir, naquele tempo eu podia de facto voar - ou, pelo menos, quase, ou, melhor dizendo: naquela altura teria realmente conseguido voar, se de facto o tivesse querido fazer e se verdadeiramente tivesse tentado..."

in A história do senhor Sommer, de Patrick Süskind
(com ilustrações de Sempé)

terça-feira, 1 de abril de 2008

Parabéns Kundera!

Milan Kundera nasceu a 1 de Abril de 1929 em Brnö, na antiga Checoslováquia, e vive em França desde 1975.

As perguntas verdadeiramente importantes são as que uma criança pode formular - e apenas essas. Só as perguntas mais ingénuas são realmente perguntas importantes. São as interrogações para as quais não há resposta. Uma pergunta para a qual não há resposta é um obstáculo para lá do qual não se pode passar. Ou, por outras palavras: são precisamente as perguntas para as quais não há resposta que marcam os limites das possibilidades humanas e traçam as fronteiras da nossa existência.
in A Insustentável Leveza do Ser

Quando penso em Milan Kundera, lembro-me sempre das tardes de Verão deitada numa espreguiçadeira amarela virada às Berlengas, à espera do pôr-do-sol. Acho que o li no mesmo sítio, no mesmo pátio, ao fim do dia, nas tardes de praia. O mesmo se passa com Luís Sepúlveda e Colleen McCullough, sempre os li nas férias de Verão, um após outro, muitas vezes depois de a minha Mãe os ter lido, outras vezes ao mesmo tempo.

Lembro-me do verão da Ignorância (2000) e de ter ficado a pensar, a propósito de uma história minha, no facto de a ausência e a distância poderem quebrar os sonhos e os desejos, poderem apagar as lembranças e os desejos a dois e criar dois novos seres tão distantes, apesar do passado que os une. E que as ideias que temos do passado, daquilo que fomos, podem ser tão distintas de um ser para outro. Nas memórias guardamos apenas uma parte daquilo que fomos, que vimos ser e que aconteceu. A nossa ignorância está também em não saber porque recordamos o que recordamos, porque guardamos na alma determinadas coisas e não outras. É no reencontro com o passado, com as nossas personagens do passado, que nos deparamos com essa inevitável ignorância humana.

Ainda não me aventurei em A Insustentável leveza do ser (1984), mas será um dos próximos, quem sabe este Verão, na mesma cadeira virada ao mar.