Há livros que dão vontade de ler de fio a pavio, ou de os lermos devagar para nunca mais os acabarmos, antecipando a saudade daqueles que nos vão ficando queridos. Desde pequena que sou assim. Há livros que quero e não quero acabar. Muitos vão-se somando na minha mesa de cabeceira para que possa voltar a eles em dias mais cinzentos, em que bate em minha alma a melancolia. Mas a verdade é que quero saber como acabam, quem vive ou morre, mesmo quando sei que morrem todos ou não morre ninguém. Gosto de ler a última página depois da primeira, mas fica tanta saudade quando a leio depois da penúltima.
Atrás das persianas fechadas, no jardim seco, árido e tostado ardia o Verão com a sua última raiva, como um incendiário que no seu furor delirante, abrasa o campo antes de ir pelo mundo fora. O general tirou a carta, alisou a folha de papel cuidadosamente e, sob a luz forte, com os óculos no nariz, leu outra vez as linhas rectas e curtas, traçadas com letras alongadas. Cruzou as mãos atrás das costas e assim continuou a leitura.
(...)
A ama sentou-se. No último ano envelhecera. Depois dos noventa as pessoas já não envelhecem como depois dos cinquenta ou sessenta. Envelhecem sem ressentimento. O rosto de Nini estava enrugado e rosado - as matérias muito nobres envelhecem assim, como as sedas de centenas de anos em que uma família teceu toda a sua habilidade manual e os seus sonhos. No ano passado contraíra cataratas num dos olhos. Esse olho estava agora triste e cinzento. O outro ficava azul, tão azul como as lagoas eternas entre as grandes montanhas, em Agosto. Esse olho sorria.
in As velas ardem até ao fim - Sándor Márai
6 comentários:
E olha que esse livro não dá para pôr de lado até ao fim! Se dúvidas houvesse, deixaria de tê-las quem tivesse a sorte de ver-te a ele pegada este fim-de-semana, de sentir num ombro o movimento da tua mão a mudar de página, ou no colo uma mudança de posição para o braço não ficar dormente, ou ainda, no ouvido, essas e outras frases que não resististe a partilhar na hora. De fio a pavio, como as velas que ardem no título, na narrativa e estou em crer que na vida. Um beijo, loirinha!
PS: Vi As velas ardem até ao fim em teatro, com o Jeremy Irons no protagonista. Ver o pano cair no final foi tão doloroso como virar a última página...
Um livro magistralmente escrito, Sofia. Quando o acabei voltei quase ao princípio, porque sou como tu: não me apetecia sair daquela sala, daquele diálogo lancinante entre dois homens perdidos de si próprios, que se encontravam finalmente.
Viste o J. Irons representar isto? Isso é que é sorte, Huck!!
Beijinhos aos dois
Boa noite Sofia!
Vim direitinha do Páginas aqui ao teu Cais, retribuir-te a visita!
Li pouco que já é um pouco tarde...mas o que li gostei..muito!
Voltarei em breve..com mais tempo!
Beijinho
Cleo
Huck, gosto tanto quando já leste os livros que estou a ler... assim posso recitar-te metade, porque me apaixono pelas palavras e pelas frases... Gosto tanto de ler ao teu colo...
Av, estou a adorar, mas a adiar o fim, detesto os fins das coisas boas... e sim, o huck é um sortudo...
beijinhos
Olá Cleo,
pois já nos tinhamos cruzado por aí no mundo da blogosfera! Ainda bem que gostaste... volta sempre!
beijinhos
É verdade, Ana. Em Londres, com uma minigarrafa de Veuve Clicquot no intervalo e jantar no L'Escargot a seguir. Irons magistral, texto arrepiante. Ali, como em Lisboa e no Toxofal, este livro dá-me sorte, não achas? Beijos.
Completamente! Nunca o largues...
beijos
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