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segunda-feira, 9 de junho de 2008

Dá-me a tua mão

O intante de silêncio que hoje me apetece.


Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.

De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.



Clarice Lispector

sábado, 31 de maio de 2008

Poema de Sábado

(escultura da maternidade)


LETTERA AMOROSA

Respiro o teu corpo
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 27 de maio de 2008

As artes do poema


UM POEMA

Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...

Miguel Torga, Diário XIII

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Matar saudades


Cecília Meireles, em desenho de Apard Szenes

"(...) Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano."
Cecília Meireles (1901-1964)


Voltei a estudar literatura. Andava com tantas saudades de pegar num livro, de fio a pavio, e de destrinçar as entrelinhas, as reticências e o que se esconde por trás de um poema, de um texto. Há dias, lá andava às voltas com Cecília Meireles, quando me perdi em interpretações, em leituras minhas, e senti a tal saudade. Peguei num lápis e comecei a rabiscar os versos, a escrever em letra miudinha ao lado deles e a construir uma nova realidade do poema aos meus olhos de agora. Perdi-me de encantamento.

Gosto de Cecília. Conheço os seus poemas de uma Antologia à qual tenho um carinho especial e de versos soltos que às vezes encontro. Pesquisei um pouco mais sobre a biografia, a sua vida de menina órfã desde cedo, de pai e de mãe. Por isso, desde logo criou uma certa 'intimidade com a Morte', como disse. Ganha com ela a plena consciência, própria dos poetas - o confronto do éfemero com o eterno, porque na vida tudo é transitório, tudo passa. Essa temática tão cara aos poetas de todos os tempos. Gosto da sua poesia transparente, da simplicidade do seu lirismo, que é, ao mesmo tempo, concretizado com enorme preciosismo. Ao lê-la, aproximamo-nos da poesia primitiva, pela sua pureza e espontaneidade.

E foi assim que peguei em livros e me pus a ler e me pus a estudar uma poeta que é autora dos mais claros poemas brasileiros.

Acho que a seguir vou voltar-me para a Sophia ou para Mário Quintana. Ainda não me decidi, mas sei que não vou deixar voltar a saudade!

terça-feira, 22 de abril de 2008

Dia da terra

Torga: "planta transmontana, urze campestre, cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas entre as rochas. Assim como eu sou duro e tenho raízes em rochas duras, rígidas, Miguel Torga é um nome ibérico, característico da nossa península(...)"




Hoje é Dia da Terra e tomo-o apenas como pretexto para aqui pôr o poema Terra de Miguel Torga, um dos meus poetas de eleição. Cantor do mundo rural, da terra portuguesa (Hoje sei apenas gostar / duma nesga de terra / debruada de mar - in Pátria) e das forças telúricas, poeta das cores da terra e da realidade quente do interior português. Caminhante numa busca incessante da intimidade com os elementos primordiais e defensor do que chamou 'espírito da terra'.

Também eu quero abrir-te e semear
Um grão de poesia no teu seio!
Anda tudo a lavrar,
Tudo a enterrar centeio,
E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.

Na seara madura de amanhã
Sem fronteiras nem dono,
Há de existir a praga da milhã,
A volúpia do sono
Da papoula vermelha e temporã,
E o alegre abandono
De uma cigarra vã.

Mas das asas que agite,
O poema que cante
Será graça e limite
Do pendão que levante
A fé que a tua força ressuscite!

Casou-nos Deus, o mito!
E cada imagem que me vem
É um gomo teu, ou um grito
Que eu apenas repito
Na melodia que o poema tem.

Terra, minha aliada
Na criação!
Seja fecunda a vessada,
Seja à tona do chão,
Nada fecundas, nada,
Que eu não fermente também de inspiração!

E por isso te rasgo de magia
E te lanço nos braços a colheita
Que hás de parir depois...
Poesia desfeita,
Fruto maduro de nós dois.

Terra, minha mulher!
Um amor é o aceno,
Outro a quentura que se quer
Dentro dum corpo nu, moreno!

A charrua das leivas não concebe
Uma bolota que não dê carvalhos;
A minha, planta orvalhos...
Água que a manhã bebe
No pudor dos atalhos.

Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O meu poeta de hoje


Nunca são as coisas mais simples que aparecem quando as esperamos. O que é mais simples, como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se encontra no curso previsível da vida. Porém, se nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos nos empurrou para fora do caminho habitual, então as coisas são outras. Nada do que se espera transforma o que somos se não for isso: um desvio no olhar; ou a mão que se demora no teu ombro, forçando uma aproximação dos lábios.

Nuno Júdice

sexta-feira, 21 de março de 2008

Bom dia, Primavera!


Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás as mãos de quem te espera.

Eugénio de Andrade


(Mariza - Primavera)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Soube-me a amar


Hoje saí para almoçar e não voltei. Desliguei o telemóvel, entrei no carro e pus-me a caminho do mar. Pelo caminho, abri as janelas de par em par e pus a Flauta Mágica a tocar, com o volume no máximo, para que a flauta calasse o burburinho da cidade.

Cheguei ao mar e nele reflectia o imenso sol brilhante. Desci à praia, descalça, como se querem os pés na areia, transformei as minhas calças cigarrilha nuns corsários e lancei-me à beira-mar.

Durante horas, percorri-a para um lado e para o outro, saltitando e fugindo da ondas de maré cheia. Perfeito momento de egoísmo, de encontro do eu com o eu, sem os barulhos do dia, os silêncios da noite e a agitação do pensamento. Só eu. Os pés frios foram ganhando o calor dos passos pequenos, enterrados na areia acabada de molhar e o pouco vento que fazia, foi sendo brisa musical. Ao fundo as rochas, os outros, os surfistas, o mundo... mas ali era só eu. E sabem a imensidão os passeios pelo mar, sabem a poesia e eternidade. E hoje, esta tarde... soube-me a amar.

Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.

Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d'alva
Rainha do mar.

Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.
(Manuel Bandeira
)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Se eu voar...

Porque hoje estou com desejos de voar e não voltar; de levitar, subir a palmo e meio da beira-mar e ficar por ali.

Que é voar?
É só subir no ar,
levantar da terra o corpo,os pés?
Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre,leve,independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não-vivência

E isso é voar?

Não.

Voar é humano
é transitório , momentâneo...

Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:
isso é partir
e não voltar.


Ana Hatherly

Nota: poema roubado do Zoo Bizarro, um blogue que me dá sempre os bons dias. Obrigada JG.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Bom fim-de-semana


(Cais de embarque, fotografia de Maria Isabel Baptista)
BOM FIM-DE-SEMANA
***
Porque desejo o que não preciso?
Porque busca a minha alma, como o fogo, ou uma abstracta ânsia incandescente, tudo o que fica mais além?
(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Palavras de poeta

Porque era o que estava escrito numa parede do quarto onde ficámos na Coruña, muito bem instalados, tratados como família. Uma hino perfeito às palavras...

Las Palabras
de Pablo Neruda

...Todo lo que usted quiera, sí señor, pero son las palabras las que cantan, las que suben y bajan.

Me posterno ante ellas... Las amo, las adhiero, las persigo, las muerdo, las derrito... Amo todas las palabras. Las inesperadas... Las que glotonamente se esperan, se escuchan, hasta que de pronto caen...

Vocablos amados. Brillan como piedras de colores, saltan como platinados peces, son espuma, hilo, metal, rocío... Persigo algunas palabras...

Son tan hermosas que las quiero poner en mi poema. Las agarro al vuelo cuando van zumbando, y las atrapo, las limpio, las pelo, me preparo frente al plato, las siento cristalinas, ebúrneas, vegetales, aceitosas, como frutas, como algas, como ágatas, como aceitunas... Y entonces, las revuelvo, las agito, me las bebo, las trituro, las libero, las emperejilo...

Las dejo como estalactitas en mi poema, como pedacitos de madera bruñida, como carbón, como restos de naufragio, regalos de la ola.

Todo está en la palabra. Una idea entera se cambia porque una palabra se trasladó de sitio, o porque otra se colocó dentro de una frase que no la esperaba...

Tienen sombra, transparencia, peso, plumas. Tienen todo lo que se les fue agregando de tanto rodar por el río, de tanto trasmigrar de patria, de tanto ser raíces... Son antiquísimas y recientísimas. Viven en el féretro escondido y en la flor apenas comenzada...

Qué buen idioma el mío, qué buena lengua heredamos de los conquistadores torvos. Estos andaban a zancadas por las tremendas cordilleras, por las Américas encrespadas, buscando patatas, tabaco negro, oro, maíz con un apetito voraz.

Todo se lo tragaban, con religiones, pirámides, tribus, idolatrías... Pero a los conquistadores se les caían de las botas, de las barbas, de los yelmos, como piedrecitas, las palabras luminosas que se quedaron aquí, resplandecientes... el idioma. Salimos perdiendo... salimos ganando. Se llevaron el oro y nos dejaron el oro. Se llevaron mucho y nos dejaron mucho...

Nos dejaron las palabras.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

É a beleza do simples...


Saio pela manhã ainda enevoada, faço o meu caminho habitual, como se pairasse sobre o mundo sem realmente existir, sem ver, sem sentir e, no ar, passam bolas de sabão nascidas do sopro de uma criança... é a beleza do simples. Já no metro, perdida entre atropelos matinais de quem não ouve o mundo, um livro e um poema sobre bolas de sabão... é o prazer de uma coincidência.

As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.
Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.
(Alberto Caeiro)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Voltei...


O frio especial das manhãs de viagem,
A angústia da partida, carnal no arrepanhar
Que vai do coração à pele,
Que chora virtualmente embora alegre.


(Álvaro de Campos)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Volto já...

O Cais vai de férias até quarta, deixo-vos dois presentes:

- uma música para dançar...


(Amy Winehouse - Tears Dry on Their Own)


um poema para recitar...

Eu quero amar, Amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...além...
Mais Este e Aquele o outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder...Pra me encontrar...

("Amar" - Florbela Espanca in Amor é Poesia)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Cantinho da biblioteca (II)

Ludwig Kirchner
Die Artistin Marcella

Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.

(in soneto 'Busque Amor novas artes, novo engenho' de Luís de Camões)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Sou como a lua...



Desde pequena que gosto de ver a lua e as estrelas, sentada numa rocha, num banco de jardim, num pedaço de areia no Verão. De apontar o dedo e desenhar as constelações que o meu avô me ensinou... dizia que era romântico saber as constelações, para quando se namora ao luar. Porque elas sabem muitos dos meus segredos e porque eu acho que sou mesmo como a lua... tenho fases!


Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...


Cecília Meireles

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Micronarrativa (VI)

(Baleal - fotografia de PC)

Fica ancorado em mim! Solta o teu corpo e desce ao cais do desejo, onde o limite é o nada. Desenha com teus dedos em meu corpo o mapa dos nossos sentidos e deixa conhecer-nos, percorrer-nos como se fossemos país sem fronteiras, mar de infinito horizonte. Revela-me o segredo deste amor, onde a pátria é um só corpo e os teus olhos verdes o alto mar.




(Kátia Guerreiro – Ancorado em Mim - Poema de Ana Vidal)

Foste o mar e o veleiro
muito mais que o mundo inteiro
Ficaste ancorado em mim

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Micronarrativas (V)

Quando me calo e me perco no silêncio, meus olhos voam para outras paisagens, outros mundos perdidos. Sei que gostas de me olhar assim, perdida em mim, abandonada aos sons e aos ritmos que rodeiam um eu que se soltou! Sentada à beira-mundo, numa pedra das muitas, olho o mar, o horizonte e o infinito. Perco-me lá longe, em alto mar, ao sabor das ondas que me balançam e navego de olhos abertos. Regresso a nós chamada pelos teus olhos verdes e teus dedos morenos que penteiam meus cabelos rebeldes ao vento. Sei que só tu conheces as viagens dos meus silêncios, a que chamamos melancolias.



(recitado por Alejandro Sanz)

Me gustas cuando callas porque estás como ausente,
y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca.
Parece que los ojos se te hubieran volado
y parece que un beso te cerrara la boca.

Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerges de las cosas, llena del alma mía.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,
y te pareces a la palabra melancolía;

Me gustas cuando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:
déjame que me calle con el silencio tuyo.

Déjame que te hable también con tu silencio
claro como una lámpara, simple como un anillo.
Eres como la noche, callada y constelada.
Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo.

Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.
Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto.

Pablo Neruda in Cien Sonetos de Amor

De que cor são as nuvens?

Porque na vida não há só preto e branco e há coisas para as quais andamos a olhar há séculos, mas ainda não as vimos bem!




Ele abriu a janela ao meio, o que encheu a sala de ar frio.
- Anda cá Griet.
Poisei o trapo no parapeito e dirigi-me para junto dele.
- Espreita pela janela.
Espreitei. Estava um dia ventoso, com nuvens que desapareciam por trás da torre da Igreja Nova.
- De que cor são aquelas nuvens?
- São brancas, senhor.
- São? - perguntou ele, erguendo ligeiramente as sobrancelhas.
Deitei-lhes mais uma olhadela.
- E cinzentas. Talvez vá nevar.
- Vá lá Griet, consegues fazer melhor do que isso. Pensa nos teus legumes.
- Nos meus legumes, senhor?
Ele moveu a cabeça ligeiramente. Estava outra vez a irritá-lo. O meu maxilar contraiu-se.
- Pensa em como separaste os brancos. Os nabos e as cebolas. São do mesmo branco?
De súbito compreendi.
- Não. O nabo tem verde a cebola amarelo.
- Exactamente. Então que cores vês nas nuvens?
- Há azul nelas - respondi depois de as examinar durante alguns minutos. E... amarelo também. E algum verde! - Estava tão entusiasmada que até apontei. Tinha olhado para nuvens durante toda a vida mas era como se as visse pela primeira vez naquele momento.
Ele sorriu.
- Hás-de descobrir que há pouco branco puro nas nuvens, embora as pessoas digam que são brancas.


Tracy Chevalier, in Rapariga com Brinco de Pérola

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Tabacaria

Klimt - O Beijo, 1907/08


Hoje, não me perguntem porquê, acordei com este poema! Na minha cabeça desenhava-se o verso - 'tenho em mim todos os sonhos do mundo!'. E dei por mim a dizê-lo baixinho, repetidamente! Ainda devia estar a sonhar...

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

(...)
in Tabacaria, Álvaro de Campos